Quarta-feira, 12 de Maio de 2010

Após a visita aos aposentos dos duques de Bragança, em Vila Viçosa, e o reconforto com os deliciosos manjares alentejanos no Restaurante Medieval, já em Évora, a tarde de 8 de Maio foi dedicada a um roteiro histórico-literário, inspirado em Aparição, de Vergílio Ferreira.

 

Livraria Nazaré, Praça do Giraldo   Sob as arcadas da Praça do Giraldo  Universidade de Évora Biblioteca da Universidade de Évora

 

 

Maria Reis, Guia da Associação de Guias e Intérpretes do Alentejo (AGIA), acompanhou-nos, sob copiosa chuva, pelo centro histórico e pelos principais monumentos eborenses. Da Livraria Nazaré, na Praça do Giraldo, ao Jardim Público, aonde Alberto ia visitar Florbela (Espanca), passando pela Sé, pelo Templo de Diana e pela “Évora mortuária” representada na Capela dos Ossos, sem esquecer a Universidade nem o miradouro que, não fora a pluviosidade e a neblina, nos teria permitido avistar o Alto de São Bento, a história de Alberto Soares, professor de Português e Latim no então Liceu de Évora, foi sendo narrada, evocando personagens e locais, ora reais, ora fictícios, com a liberdade que o autor Vergílio Ferreira (também ele professor em Évora) e o narrador autodiegético (i.e., na primeira pessoa e como agente principal da narrativa) quiseram imprimir ao romance.

 

Contudo, o significado profundo da obra vergiliana não se reflecte na dimensão cronológica dos factos narrados, inexistente em Aparição, mas antes nas reflexões filosóficas que vão sendo feitas sobre a vida e a morte, reflexões a que não falta a dimensão transcendental da Arte, em particular da música: “A evidência da vida não é a imediata realidade mas o que a transcende…”;“A arte não era para mim um mundo da letra impressa, uma estúpida invenção de passatempo ou de vaidade: era uma comunhão com a evidência…”(p.36).

 

Ao recordar os momentos em que contemplara Cristina, uma criança de sete anos, a tocar piano magistralmente, o professor de liceu expressa assim a sua emoção: “Tudo o que era verdadeiro e inextinguível, tudo quanto se realizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza e interrogação, perfeito e sem excesso, começava e acabava ali, entre as mãos indefesas de uma criança. Mas tão forte era o peso disso tudo, tão necessário que nada disso se perdesse, que as mãos de Cristina se estorciam na distância das teclas, as pernas na distância dos pedais e toda a sua face gentil, até agora impessoal e só de infância, se gravava de arrepio à passagem do mistério. Toca, Cristina. Eu ouço. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Estou ao teu lado, ao pé de ti, sigo-te no rosto a minha própria emoção”(p.40).    

Évora


Caracterizada como um romance-ensaio, esta obra vergiliana prima pelo cruzamento entre a sua dimensão literária, ficcional, e a vertente reflexiva, que apaixona jovens e graúdos que se interrogam sobre a essência da vida e a sua dimensão transcendental. Baseada no existencialismo francês de André Malraux e Jean-Paul Sartre, Aparição, de Vergílio Ferreira, retrata encontros, e sobretudo desencontros, acompanhados de pausas na história para, enquanto escritor e personagem, Alberto Soares reflectir e deixar entrever “o dom da revelação”(p.40).   

 

Aluna chinesa participa no Percurso Literário Rumo à Sé de Évora

 

 

A música de Cristina, bem como o encontro com a montanha, são elementos simbólicos, esses sim o cerne da obra, numa busca incessante de absoluto, de transcendência, deslocada de Deus (pois Alberto Soares revela-se ateu) para a Arte.
A aparição é, assim, numa perspectiva ontológica, a aparição de si a si mesmo, a revelação do indivíduo na sua génese e ontogénese, nas suas raízes e origens, atravessada pela angústia existencial, que tem na noite (momento de escrita, de reflexão, de intimidade, do luar, do feminino…) e na montanha a sua expressão cabal.


Um livro a ler e a reler, após um “Percurso Literário” a Évora, organizado pela Biblioteca Escolar e que aconteceu curiosamente dias antes de o Papa Bento XVI se deslocar a Portugal e se encontrar no Centro Cultural de Belém com um grupo expressivo de intelectuais e artistas portugueses, numa aclamação da Arte como expressão e ponte para a Transcendência, unindo crentes e não crentes, procurando “fazer da vida um lugar de beleza”.

 


Carla Crespo
Professora de Literatura Portuguesa

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 


publicado por aquiharatos às 22:50
Gosto de livros. Da textura, da cor, das linhas, dos parágrafos. De folhear, ler, parar, saborear. Gosto de livros. Gosto. Moro na Biblioteca da Escola Secundária Fernão Mendes Pinto, em Almada, e ando à procura de outros ratos devoradores. Visita-me!
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