A disponibilidade da autora de Caderno de Memórias Coloniais não tem limites. Porque esgotada a lotação na primeira sessão de apresentação da obra, Isabela Figueiredo agendou mais dois momentos de conversa com os alunos sobre o seu livro de memórias de Moçambique.
Os alunos do Curso Profissional de Turismo ouviram com atenção a história de uma menina que viveu a sua adolescência num período de muita turbulência, de muito sofrimento (1970-1978) e num espaço (então Lourenço Marques, hoje Maputo) habitado por dois mundos diferentes: o mundo do pai, que simboliza o antigo poder e o racismo, e o mundo da filha, que representa a tolerância, a defesa da igualdade entre todos os seres humanos, para além da cor da pele, da raça, da cultura...
A visão destes dois mundos foi ainda enriquecida pela partilha de Ângela Laginhas, Assistente Operacional da nossa escola, que nos falou da sua vivência em Moçambique, de mãos dadas com todos, brancos e pretos, gente pobre e pessoas com bens, gente paternalista e colonizadora e pessoas que criaram laços de fraternidade humana à sua volta.
Estabeleceu-se o diálogo com a plateia, constituída por muitas alunas negras (negras? pretas? de cor? – a força das palavras e o contexto em que devem ser usadas, de acordo com quem diz, a quem diz e em que momento foi também alvo de discussão sem preconceitos). O olhar do negro sobre o branco e deste sobre aquele foi realçado. Afinal, não são os dois olhares complementares?
Recordámos a história de Papalagui, que significa “o Branco, o Senhor” e que retrata como um indígena polinésio olha para a nossa civilização. Traduz o “modo como um indivíduo ainda intimamente ligado à natureza nos vê a nós e à nossa cultura” (in O Papalagui, discursos de tuiavii chefe de tribo de tiavéa nos mares do sul, trad. Luiza Neto Jorge).
O conceito de alegria, de cores (garridas em África, cinzentonas em Portugal, nos anos 70), de lugares que se podiam povoar…tudo era diferente entre África e a chamada Metrópole. Em Moçambique marcava-se encontro numa esquina, com naturalidade; em Portugal, isso seria de muito má reputação; em África as roupas eram todas coloridas e apelativas, das calças amarelas às camisas vermelhas ou verde-alface; aqui tudo era discreto e bem comportado…, cheio de preconceitos.
E se voltarmos à Polinésia? O que nos diz o indígena que olha para o homem ocidental? Que este vive numa caixa de fósforos, dada a pequenez, a exiguidade dos prédios, se comparada com a floresta; que o homem branco, o Papalagui, sofre da grave doença de estar sempre a pensar, sem aproveitar os momentos da vida. Eis um despertar da leitura:
“A vida do Papalagui faz lembrar um homem que vá de canoa a Savaü e que, mal se afaste da margem, pense: “Quanto tempo levarei daqui até Savaü?” E assim, põe-se a pensar, sem ver a risonha paisagem que vai atravessando. Depara-se-lhe então, na margem esquerda, o flanco de uma montanha, da qual já não mais desvia os olhos. “Que haverá ali, detrás daquela montanha? – pensa ele. – Alguma estreita ou profunda baía?” Tanto pensa que se esquece de fazer coro com os jovens remadores; e nem sequer ouve os alegres gracejos das raparigas. (…)
O Papalagui …faz imenso barulho com os pensamentos que tem; consente-lhes que sejam mais barulhentos do que crianças mal educadas. Comporta-se como se eles fossem tão preciosos como as flores, as montanhas e as florestas.”(p.65)
A terceira sessão sobre as memórias de África decorreu na Biblioteca Escolar, espaço vocacionado para a intertextualidade.
À medida que a escritora conversava com os alunos e se escutavam mutuamente, a professora bibliotecária ia recheando a conversa com outras propostas de leitura. Uns solicitavam policiais, outros poesia, outros ainda afirmavam não gostar de ler.
Será que já experimentaram? Ora experimentem ouvir José Luís Peixoto, autor de Gaveta de Papéis, uma das obras requisitadas pela turma.
http://www.youtube.com/watch?v=jonJaJkh58E