Segunda-feira, 05 de Abril de 2010

O senhor Valéry não era bonito. Mas também não era feio.

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Há muito tempo atrás havia decidido trocar os espelhos por quadros de paisagens. Desconhecia, pois, o seu aspecto exterior actual.

O senhor Valéry dizia:

 

 

— É preferível assim.

 

E explicava:

 

— Se me visse bonito ficaria com medo de perder a beleza; e se me visse feio ficaria com ódio às coisas belas. Assim, não tenho medo nem ódio.

 

 

E sem ser bonito nem feio, o senhor Valéry passeava pelas ruas da cidade, olhando, com atenção, para as pessoas com quem se cruzava.

 

Ele explicava:

 

— Se me sorriem percebo que estou bonito, se desviam os olhos percebo que estou feio.

 

Teorizando dizia ainda:

 

— A minha beleza é actualizada a cada instante pela cara dos outros.

 

Por vezes, depois de se cruzar com alguém que desviava os olhos, o senhor Valéry, percebendo, passava a mão pelo seu cabelo, penteando-se ao mesmo tempo que procurava um outro rosto dentro de si próprio, agora mais agradável.

 

O senhor Valéry comentava, em jeito de conclusão:

 

— O espelho é para os egoístas.

 

— E o desenho? — perguntaram-lhe.

 

— Hoje não há desenho — respondeu o senhor Valéry, e despediu-se logo de todos com um movimento brusco, mas gentil.

 

As pessoas gostavam do senhor Valéry.

 

          

                                                  Gonçalo M. Tavares, in O Senhor Valéry



publicado por aquiharatos às 23:31

 

Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento

 

O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e

só entram nos meus versos as coisas de que gosto

 

O vento das árvores o vento dos cabelos

o vento do inverno o vento do verão

O vento é o melhor veículo que conheço

Só ele traz o perfume das flores só ele traz

a música que jaz à beira-mar em agosto

Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento

O vento actualmente vale oitenta escudos

Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto

 

Ruy Belo, in Todos os Poemas, Assírio & Alvim 

 

                                                                                



publicado por aquiharatos às 15:38

     O camponês afeiçoou-se a uma cerejeira desde que sua mulher faleceu. Todas as manhãs a visitava, afagando seu tronco. No mês em que o camponês esteve de cama, com bronquite, também a cerejeira adoeceu. Depois levantou-se e voltou a acariciá-la e a falar-lhe e, rapidamente, a cerejeira de mil folhas enfeitou seus ramos.

 

 

Um dia, no mercado, ao comprar uma foice, o camponês sentiu um irresistível desejo de regressar aos seus campos. Parecia-lhe que a cerejeira precisava de si. Encontrou-a toda florida, sorrindo para ele.

 

 

Sentou-se, então, sob a árvore, com as costas apoiadas no tronco e, de improviso, sobre o corpo do camponês, choveram todas as pétalas da cerejeira em flor.
 

  

Tonino Guerra, Histórias para uma Noite de Calmaria, Assírio & Alvim, p.21



publicado por aquiharatos às 15:11
Gosto de livros. Da textura, da cor, das linhas, dos parágrafos. De folhear, ler, parar, saborear. Gosto de livros. Gosto. Moro na Biblioteca da Escola Secundária Fernão Mendes Pinto, em Almada, e ando à procura de outros ratos devoradores. Visita-me!
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