Após a visita aos aposentos dos duques de Bragança, em Vila Viçosa, e o reconforto com os deliciosos manjares alentejanos no Restaurante Medieval, já em Évora, a tarde de 8 de Maio foi dedicada a um roteiro histórico-literário, inspirado em Aparição, de Vergílio Ferreira.
Maria Reis, Guia da Associação de Guias e Intérpretes do Alentejo (AGIA), acompanhou-nos, sob copiosa chuva, pelo centro histórico e pelos principais monumentos eborenses. Da Livraria Nazaré, na Praça do Giraldo, ao Jardim Público, aonde Alberto ia visitar Florbela (Espanca), passando pela Sé, pelo Templo de Diana e pela “Évora mortuária” representada na Capela dos Ossos, sem esquecer a Universidade nem o miradouro que, não fora a pluviosidade e a neblina, nos teria permitido avistar o Alto de São Bento, a história de Alberto Soares, professor de Português e Latim no então Liceu de Évora, foi sendo narrada, evocando personagens e locais, ora reais, ora fictícios, com a liberdade que o autor Vergílio Ferreira (também ele professor em Évora) e o narrador autodiegético (i.e., na primeira pessoa e como agente principal da narrativa) quiseram imprimir ao romance.
Contudo, o significado profundo da obra vergiliana não se reflecte na dimensão cronológica dos factos narrados, inexistente em Aparição, mas antes nas reflexões filosóficas que vão sendo feitas sobre a vida e a morte, reflexões a que não falta a dimensão transcendental da Arte, em particular da música: “A evidência da vida não é a imediata realidade mas o que a transcende…”;“A arte não era para mim um mundo da letra impressa, uma estúpida invenção de passatempo ou de vaidade: era uma comunhão com a evidência…”(p.36).
Ao recordar os momentos em que contemplara Cristina, uma criança de sete anos, a tocar piano magistralmente, o professor de liceu expressa assim a sua emoção: “Tudo o que era verdadeiro e inextinguível, tudo quanto se realizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza e interrogação, perfeito e sem excesso, começava e acabava ali, entre as mãos indefesas de uma criança. Mas tão forte era o peso disso tudo, tão necessário que nada disso se perdesse, que as mãos de Cristina se estorciam na distância das teclas, as pernas na distância dos pedais e toda a sua face gentil, até agora impessoal e só de infância, se gravava de arrepio à passagem do mistério. Toca, Cristina. Eu ouço. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Estou ao teu lado, ao pé de ti, sigo-te no rosto a minha própria emoção”(p.40).
Caracterizada como um romance-ensaio, esta obra vergiliana prima pelo cruzamento entre a sua dimensão literária, ficcional, e a vertente reflexiva, que apaixona jovens e graúdos que se interrogam sobre a essência da vida e a sua dimensão transcendental. Baseada no existencialismo francês de André Malraux e Jean-Paul Sartre, Aparição, de Vergílio Ferreira, retrata encontros, e sobretudo desencontros, acompanhados de pausas na história para, enquanto escritor e personagem, Alberto Soares reflectir e deixar entrever “o dom da revelação”(p.40).
A música de Cristina, bem como o encontro com a montanha, são elementos simbólicos, esses sim o cerne da obra, numa busca incessante de absoluto, de transcendência, deslocada de Deus (pois Alberto Soares revela-se ateu) para a Arte.
A aparição é, assim, numa perspectiva ontológica, a aparição de si a si mesmo, a revelação do indivíduo na sua génese e ontogénese, nas suas raízes e origens, atravessada pela angústia existencial, que tem na noite (momento de escrita, de reflexão, de intimidade, do luar, do feminino…) e na montanha a sua expressão cabal.
Um livro a ler e a reler, após um “Percurso Literário” a Évora, organizado pela Biblioteca Escolar e que aconteceu curiosamente dias antes de o Papa Bento XVI se deslocar a Portugal e se encontrar no Centro Cultural de Belém com um grupo expressivo de intelectuais e artistas portugueses, numa aclamação da Arte como expressão e ponte para a Transcendência, unindo crentes e não crentes, procurando “fazer da vida um lugar de beleza”.
Carla Crespo
Professora de Literatura Portuguesa